Lidia Cesaro Penha Ganhito
Instituto de Artes da UNESP (São Paulo, Brasil)
Comunicações orais:
A prática colaborativa de modelo vivo como convite ao corpo-artista
Resumo
Na comunicação irei compartilhar algumas considerações que desenvolvi em minha dissertação de mestrado, onde apresento a minha experiência com oficinas colaborativas de modelo vivo realizadas em instituições de ensino formais, informais e não-formais na cidade de São Paulo entre 2012 e 2019. A partir de reflexões teóricas e relatos de experiência, irei defender que o ateliê colaborativo difere-se do ateliê tradicional de modelo vivo tanto no âmbito das suas metodologias quanto nos seus objetivos. Busco com minha pesquisa demonstrar que os ateliês tradicionais de modelo vivo ignoram as buscas filosóficas contemporâneas por novas epistemologias dos corpos e seguem engendrados na busca da suposta “forma ideal”, fundamentalmente alinhada com a perspectiva heteropatriarcal, colonial e racista da modernidade. Fundamentado na ideia nu como forma de arte, o ateliê tradicional de modelo vivo propõe a sistematização da forma humana a partir de uma perspectiva hegemônica (branca, europeia, jovem e atlética) reafirmando as polaridades que embasam as concepções de superioridade de certos corpos sobre os outros. Argumento aqui que a prática colaborativa de modelo vivo parte de premissas radicalmente diferentes dos ateliês tradicionais, trabalhando ativamente para a construção de novos paradigmas para as representações dos corpos. Ao eliminarmos a separação entre artistas e modelos, exploramos as possibilidades de utilizar o corpo de forma contra-canônica, procurando um novo corpo: o corpo-artista. Defino como corpo-artista aquele que, entendendo-se como sujeito (KILOMBA, 2008), coloca-se como construtor da própria narrativa. Este processo envolve o exercício de olhar para si: reconhecer o próprio corpo, refletir sobre ele, criar a partir dele. Ao convidar as pessoas a transitar entre os papéis de observadoras/res e observadas/os, o ateliê colaborativo de modelo vivo afasta-se da fundamentação primária do ateliê tradicional – a exposição de corpos-objetos para treinar artistas na busca da forma ideal do nu – e configura-se como espaço para a experimentação autoral com sua própria imagem. Este exercício de olhar para os corpos – seja o seu próprio ou o de outras/os – propõe uma fissura nas pautas da discursividade hegemônica. Olhar-nos a nós mesmas/os com nossos próprios olhos é um ato político; e é ao trazer a experiência de utilização do seu corpo para dentro da prática de observação que cria-se o corpo-artista. Opondo-se às premissas do ateliê tradicional de modelo vivo, que nos nos estimulam a reproduzir esquemas gráficos baseado na transformação do corpo para encaixá-lo ao cânone, as oficinas colaborativas de modelo vivo reconhecem e exploram as diversas possibilidades de existência dos corpos que nos cercam, demonstrando a multiplicidade de gêneros, raças, formas e subjetividades. Assim, proporciona a quem participa do ateliê colaborativo a criação de um repertório visual ampliado, que prevê outros corpos para além dos corpos hegemônicos da cultura visual canônica. O desenho em uma oficina colaborativa de modelo vivo não é um fim em si: o objetivo não é formar desenhistas “melhores”, mais qualificados para inserirem-se no cânone. O desenho transforma-se, na oficina colaborativa de modelo vivo, em uma ferramenta que, aliada ao exercício criativo performático com próprio corpo e da observação de outros corpos, possibilita o questionamento dos modelos de representação. Ao contrário dos desenhos feitos no ateliê tradicional, que guardam a característica de estudos, os desenhos do ateliê colaborativo podem ser compreendidos como registros de performances ou pistas para compreendermos os questionamentos e as experimentações – com o corpo e com o traço – realizadas durante os encontros. Para demonstrar as premissas acima, proponho para esta comunicação encontros entre registros fotográficos/vídeos, relatos de experiência de participantes das oficinas, relatos de artistas que também trabalharam como modelos e obras do cânone da história da arte. Referências bibliográficas CLARK, Kenneth. The Nude: A study in ideal form. New York: Doubleday Anchor Books, 1956. KILOMBA, Grada. 2008. Memórias da Plantação.: Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. BERGER, John. Ways of Seeing. Londres: Penguen Books, 2019. POLLOCK, Griselda. Encounters in the Virtual Feminist Museum: Time, space and the archive. Abingdon: Routledge, 2007. 1. Entendo como ateliê colaborativo de modelo vivo a prática de desenho de observação do corpo entre pessoas que organizam-se horizontalmente, revezando-se para experimentar mutuamente os papeis de modelo e artista. 2. Aqui me refiro às teorias feministas pós-estruturalistas, queer/cuir, decoloniais e antirracistas, entre as quais destaco especialmente o pensamento de Paul B. Preciado, Teresa de Lauretis, Grada Kilomba, Gayatri Spivak e Monique Wittig, entre outras. 3. Em The Nude: a study in ideal form (1956) Kenneth Clark dedica-se a estudar o nu pelo viés da busca da forma ideal, desenvolvendo uma análise de um ponto de vista pretensamente neutro, centrado nos elementos formais das imagens, suas relações de proporção e composição. Suas afirmações reproduzem os ideais de beleza em que o autor acredita como verdades universais, e o pesquisador não entrevê a possibilidade de questionar as maneiras como os elementos formais e princípios de composição são utilizados para comunicar uma ideologia específica. 4. Sobre uma análise do modernismo como construção ideológica, ver: TJ Clark, Griselda Pollock, Rosika Parker, Tamar Garb, Anne Lafont e Janet Wolff. 5. Para uma definição do nu enquanto forma de arte, ver John Berger e Kenneth Clark. 6. Uso o conceito de sujeito como definido por Grada Kilomba (2008) em diálogo com bell hooks. A autora argumenta que sujeitos são aquelas/es que têm o direito de definir suas próprias realidades, estabelecer suas próprias identidades e nomear suas histórias ( KILOMBA, 2008, p. 28), anunciando e reivindicando os temas e agendas das sociedades que vivem (KILOMBA, 2008, p. 75). 7. Aqui trago objeto como conceito em oposição aos sujeito, ou seja, objeto é aquela/e que tem sua realidade e sua identidade criada por outros, sendo sua história designada a partir da sua relação com aqueles que são sujeitos (hooks apud KILOMBA, 2008, p. 28).